
Anotícia de que 12 clubes grandes da Europa, visando o aumento das receitas, juntaram-se para criar uma Superliga escancarou uma treta que está se tornando cada vez maior: torcedores x cartolas. Em uma queda de braço que já dura algum tempo, de um lado estão os apaixonados e apaixonadas por seus clubes e pelo futebol no geral; do outro, os caras que decidem na canetada os rumos do esporte mais popular do planeta.
Entendendo que a bola não rola mais sem grana por trás, os torcedores, carregando memórias de tempos em que amar e torcer pareciam mais fáceis, lutam incansavelmente contra a transformação do futebol em soccer. Tentam, pelo menos. Isso porque o soccer, como chamam o esporte nos Estados Unidos, é quase um sinônimo de dinheiro, negócio. Como fazer, então, para equilibrar a balança entre o desejo de ser campeão dos principais campeonatos e o ódio por isso estar condicionado à quantidade de dinheiro que seu clube tem?
As torcidas inglesas talvez vivam isso como ninguém.
Inseridos em um sistema onde é permitido que os clubes sejam vendidos e comprados por bilionários de qualquer parte do mundo, os torcedores, de uma forma meio perversa, entram na equação na hora do negócio: quanto mais torcida, maior o preço do clube.
"Quando Mike Ashley vende o Newcastle United, a única coisa que vale a pena vender é sua base de fãs. Sem eles, o clube não vale."
Alex Hurst, torcedor do Newcastle
Depois, ficam todos à mercê da boa vontade dos proprietários para investimentos em grandes jogadores, estruturas, diminuição do preço dos ingressos...
O Bury, situado ao norte da Grande Manchester, foi uma das vítimas recentes desse mundo sinistro em que o futebol está metido. Comprado em 2018 e com dois títulos da tradicional Copa da Inglaterra na sala de troféus, o pequeno clube, por causa de dívidas estratosféricas acumuladas durante anos, deixou de existir. Em uma situação cruel, os torcedores, justamente aqueles que criticam o sistema, foram obrigados a torcer até o último minuto para que alguém comprasse o clube e o resgatasse do abismo em que estava. A compra não rolou.

Entre os considerados grandes, não é difícil ver protestos de torcidas nas arquibancadas e nas redondezas dos estádios contra os donos dos clubes. No Old Trafford, os fanáticos torcedores do Manchester United constantemente levam faixas e cantam contra os irmãos Glazer, empresários norte-americanos que se tornaram proprietários do clube há pouco mais de 15 anos. Segundo a torcida, os donos só se importam com o lucro e não com o sucesso esportivo dos Red Devils.
"Quinze anos de propriedade sem paixão, perspectiva e apoio financeiro quando necessário. Quinze anos enriquecendo a família Glazer, sem se importar o suficiente para investir no futuro do nosso clube. O United para mim e para muitos outros é um estilo de vida, uma religião [...] tire os Glazers de Manchester!"
Trecho de uma carta do grupo American Red Devils destinada à diretoria do clube.
Depois da entrada do United na Superliga, a paciência da torcida com os proprietários e o atual presidente parece ter acabado. Dezenas de torcedores invadiram o campo de Old Trafford com sinalizadores, cartazes e faixas antes do clássico contra o Liverpool, que rolaria pela rodada 34 da liga nacional.

Uma torcida que vive situação parecida é a do Arsenal. Há muito tempo sem protagonismo na Premier League e sem nunca ter conseguido um título nos torneios europeus nos 10 anos em que Stanley Kroenke, outro norte-americano bilionário, está à frente do clube, o empresário é alvo do ódio dos torcedores, que cobram a preservação da tradição dos Gunners além de títulos.
Se a briga para que os donos abram mão dos clubes ainda não deu resultado, a luta pela história das instituições surtiu efeito na saída de vários deles da Superliga. Para defender um esporte mais democrático e impedir que os clubes tornem banais as tão especiais noites europeias de futebol, as torcidas do Arsenal, Chelsea, Tottenham, Manchester City, Manchester United e Liverpool protestaram contra a entrada dos clubes na competição. Entendendo que a nova liga ignorava as origens pobres dos clubes por mais dinheiro, muitos aproveitaram para, novamente, pedir a saída dos proprietários.
Para se livrar de quem acreditam prejudicar a instituição, no entanto, as manifestações da torcida não parecem ser suficientes para os donos decidirem se desfazer do clube e negociá-lo com outro multimilionário. Ao mesmo tempo em que são a alma e parte mais importante do clube, os torcedores também são reféns. Mas não se rendem.
A torcida do tradicional Newcastle, por exemplo, achou uma forma prática de tentar, finalmente, ter voz nas decisões e mudar o rumo do clube do coração, que está sendo sucateado pelo dono Mike Ashley. O Newcastle United Supporters Trust (NUST), grupo organizado de torcedores, lançou a The 1892 Pledge, uma campanha para arrecadar dinheiro e comprar pelo menos 1% do clube quando o atual proprietário decidir vendê-lo.
"Achamos que os fãs de futebol - e os do Newcastle - não percebem quanto poder e quanta influência têm.”
O PELEJA trocou uma ideia com Alex Hurst, idealizador do projeto e certamente um torcedor cansado de ver o clube que ama sendo gerido por um cara que só quer saber das cifras. Ele explicou sobre o grupo:
“NUST é uma organização democrática e transparente. Se obtivermos êxito em nosso objetivo, que é comprar parte do clube, os representantes serão diretamente indicados pelos membros do Trust, escolhidos em eleições anuais.”
A campanha não tem prazo final e vai durar o quanto for necessário. Além disso, a proposta é de que pessoas do NUST trabalhem na diretoria ou em outros cargos importantes no Newcastle, garantindo que a torcida esteja representada nas decisões. E se você, torcedor dos Magpies, sonhou em algum momento fazer parte do clube, saiba que essa chance é real. E, segundo Alex, a presença de torcedores brasileiros no grupo é muito bem vista.
“Torcedores brasileiros do Newcastle podem participar se tornando membro do Trust. E apoiadores de todo o mundo são bem-vindos. Adoraríamos ver mais membros brasileiros. Somos 15 mil, o maior conjunto de apoiadores da PL e da Inglaterra.”
Caso você seja torcedor e queira participar, é só acessar o site da campanha.

E as alternativas dos apaixonados para salvar seus clubes de uma das garras mais devastadoras do famigerado futebol moderno, o monopólio de bilionários, continuam sendo discutidas. No Manchester United, os torcedores que defendem um clube mais democrático inspiram-se em um esquema comum na Alemanha, país onde a torcida tem maioria (51%) dos votos nas decisões do clube.
Já um grupo de torcedores do modesto Bröndby, desesperados com a ameaça de o clube dinamarques ser comprado pela Red Bull, achou uma solução inusitada: compraram centenas de bilhetes de loteria para tentar ganhar o prêmio e comprar o clube eles mesmos. O Bröndby é conhecido como “Os garotos dos subúrbios do oeste” e a torcida acredita que uma possível venda para a Red Bull feriria os princípios do clube. Se liga em um trecho do comunicado divulgado pelo conjunto de torcedores responsáveis pela ação.
“Se a Red Bull se envolver com o Bröndby, não poderemos mais nos identificar como torcedores ativos do clube. Em Salzburg e Leipzig, podemos ver como o dinheiro dos austríacos transformou o futebol real em negócio puro. Eles mudaram os escudos, as cores, o nome dos estádios… Tudo! Nós nunca deixaremos que isso aconteça com nosso clube.”

Os torcedores do mundo todo parecem estar entendendo cada dia mais que precisarão lutar para não deixar que as tradições e memórias dos seus clubes se percam no redemoinho de dinheiro, investimentos e ações, algo que não fazia parte do futebol que aprenderam a gostar.